segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O ser e o ter


Um pai ou mãe nasce quando em seu coração a vontade de se doar pulsa. O mundo não muda, sua forma de enxergá-lo sim. De repente, o trânsito está violento, as calçadas não têm rampas, o vizinho faz muito barulho, os germes estão em todo lugar... O alerta de perigo vem todos os lados. A tênue linha entre bom senso e colapso mental surge ao próximo passo. Laços afetivos, neste momento, são muito importantes. A primeira “sacudida” vem daqueles que mais te amam: “Filha, desconfia! O mundo não vai mudar porque seu filho vai nascer”. Começa aí a verdadeira mudança. Você percebe então o significado de adaptar-se, e com muita disposição reforma a casa, adiciona sites infantis nos “favoritos”, ministra palestras informais à família... E aos poucos descobre um mundo diferente de tudo o que já viveu. Descobre que o brinquedo desmontado na sala vira enfeite e que o suco no banco do carro simplesmente seca. Torna-se capaz de abrir a porta de casa (depois de subir um andar de escadas) com uma criança dormindo no colo, uma bolsa de mulher e outra de criança dependuradas, e a chave do carro presa entre os dentes. Querer ter filhos é diferente de querer ser pais. Ter filhos implica uma produção ou aquisição, um artigo novo para seu usufruto. Ser pais pressupõe mudança na própria vida. Ter filhos é biológico. Ser pais é um estimulante e recompensador desafio.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Eu não ganhei flores

Felicidade pode ser escrita, descrita? É possível viver mais do que a vida parece oferecer? Cada pedaço de nós é realidade viva. Os planos traçados, a rotina estabelecida, a vontade de alimentar. Cada pensamento é realidade em construção. Os sonhos não sonhados, a emoção não vivida, a posição diante dos fatos. Viver... Incessante busca pelo equilíbrio na dualidade. Corpo-mente, saber-sonhar, decidir-esperar. O debate sobre o copo metade cheio ou metade vazio. Prefiro metade cheio, quase sempre. Acontecimentos provocam sensações, e a forma de materializá-las pode ser puramente existencialista. Construir-se, como Sartre. Ou transcender a essa lógica, compreender e aceitar o determinismo. Há jardins sob todas as janelas. Contemple-os. Hoje, eu não ganhei flores. Mas escolhi me lembrar do perfume delas.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Quando a angústia passa

Ele nasceu saudável, com peso e altura dentro do esperado considerando o milagre da herança genética. Mamou muito. Chorou pouco, porém forte, resoluto. Aprendeu rápido a adaptar-se às novidades do primeiro ano. Aos seis meses iniciou-se nos ritos familiares de alimentação. Aos nove meses foi separado de sua primária fonte de alimento, e substituiu-a sem cerimônia por um copo que jorrava mais leite do que conseguia sorver. Por esses tempos, decidiu aparecer mais que a noiva, e deu seus primeiros passos sozinho na festa de casamento da tia. Daí para frente, ousou. Deu sua primeira festa, virou cristão e tornou-se terceira pessoa, cheia de posses e sabedoria: é de Biel!; Biel sabe! Abusou do “não”, do “cadê”. Descobriu as frases longas e o pai super-herói. Então, a mãe virou coadjuvante. Caiu, pulou, pedalou a “totoquinha”, selecionou repertório musical. E tanto fez, que virou Gabriel. Já. Primeira pessoa. Protagonista de histórias vividas por ele e por outros, segundo conta. Contador de histórias, curioso. Leitor de A princesa e o Sapo (ainda que o livro esteja de cabeça pra baixo). A família cresceu junto, a cada tropeço, a cada descoberta. E chegou, enfim, o dia de deixar o berço. Muitas protelações e desculpas depois, tudo pronto. Ansiedade dos pais. Desejo e necessidade do filho, celebração do 2º ano. Banho-leite-livro-oração... cama. Senta, levanta, canta, rola, enrola, balbucia, cala... E o sol de manhã, na busca através da persiana, foi encontrá-lo em um ponto novo do quarto. A angústia pelo novo, mais uma vez, passou.